quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

Um dança


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Com a ponta do dedo ela brincava com o gelo no copo, com a bebida forte tentava esquecer o frio e com o cigarro disfarçava a solidão.
As horas passavam e na mesa cinzeiro cheio e copos vazios se completavam, num gesto pedia algo mais, uma outra dose estava servida e logo, as pedrinhas flutuantes iam se derretendo ao deslizar pelas bordas do copo. O seu olhar fixo transmitia concentração, mas ela estava distante dali, seus pensamentos ainda mais distantes, nem se deu conta quando o garçom limpou o cinzeiro e levou os copos, nunca havia fumado antes, mas devorou um maço em poucas horas.
Os olhos se movimentavam do copo para o celular, do celular para o copo, parecia que seu corpo ia explodir. Girava a cabeça como se buscasse ao redor um rosto conhecido entre os freqüentadores do bar, mas sua procura se revelava frustrada ao tragar mais um cigarro.
Gesticulou novamente as mãos e pediu a conta.
A noite era especial, era noite de lua cheia, as ruas estavam claras e ela gostava de andar pelas ruas em dias assim, tentava se equilibrar no meio fio, mas sua condição não ajudava muito, desistiu e passou a seguir o desenho dos passeios. A cada esquina olhava para o relógio, parecia ter marcado um tempo, um tempo que nunca chegava.
Viu uma banca de jornal aberta, passou a mão no bolso e sentiu que não havia mais cigarros, resolver comprar mais, não queria ficar sozinha. Cumprimentou o jornaleiro, que naquela hora, estava preocupado em apenas separar a nova edição do jornal que acabara de chegar, ela pegou os cigarros e alguns chicletes, devolvendo a revista que folheava.
Voltou para sua caminhada, agora na companhia de um cigarro acesso, mas que em poucos minutos também a deixaria só. Brincou com as folhas da árvore, roubou uma flor e foi contando suas pétalas, nunca havia sorrido fazendo isso, mas hoje riu. Sentiu se como a flor roubada, aos poucos perdendo suas pétalas, seu encanto, ficando apenas um talo solitário. Tirando o sorriso do rosto deixou cair o talo antes de arrancar a última pétala, ele não haveria de terminar a noite como ela. Não seria para ele uma noite em vão.
Abriu os braços, o vento a convidava, sentia sua blusa agitar em seu corpo e ao tentar se arrumar iniciara uma dança, ela era o seu par, os seus braços a tinha em um abraço, as suas mãos deslizavam pela cintura e a sua cabeça descansava em um dos ombros, enfim, parecia que seu encontro havia começado, enfim, parecia ter chegado seu tempo.

PS.: Música: Paciência - Chicas
Agradecimento pela música ao Narrador

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

Angel



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Uma imagem nua e crua...
Vista por olhares cozidos e vestidos...
Realidade registrada por um clique de dor...
Uma tradução que se prende no afago dessas finas mãos...
E permanecem distantes a mercê do tempo e do destino...
Aflitos, os sensíveis acompanham...
Paralisados com o contraste dos tons de cinza...
Revelando um lugar do mundo onde ainda falta cor...
Gritar, brigar, protestar e criticar...
De nada adianta se ficar sentado em poltronas marrons...
Na grande avaliação da vida é a questão do amor que tem maior peso...
E para acertá-la deveríamos pensar um pouco nesses anjos...
Seres que passam por aqui para transmitir e estimular sentimentos...
Sentimentos esses de dor, compaixão, pesar...
Mas acima de tudo, sentimentos de amor, de bem querer...


PS.: Música: Angel - Sarah Mclachlan

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

Ir e vir



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Era manhã de um dia de Domingo, o sol se guardava por entre as nuvens e ao redor olhares aflitos dirigiam-se para o céu. A qualquer instante a nuvem passaria e lá estava ele a esquentar aquela nova manhã.
Havia levantado disposta a se entregar ao mar, tinha esperança que na água sua alma enfim flutuasse. Na areia deixou apenas a toalha e os chinelos e caminhou seguindo outros passos, que diferente dos dela, vinham.
Imaginou que por trás daquelas pegadas alguém tinha acabado de ficar mais leve, como ela queria estar agora, sentia seu corpo preso, enraizado em terrenos hostis, onde pequenas formigas estavam a lhe roer as folhas e os frutos. Seria bom entrar no mar. Sentir se levada pelas ondas. Afundar na areia fofa e emergir buscando ares de liberdade.
Aproximou-se da beira. A água trazida pelas ondas beijava seus pés. Num misto de euforia e receio deu o próximo passo. Agachou-se e com as mãos molhou o rosto. Sentiu o salgado doce do prazer.
Deixou-se levar e quando percebeu seu corpo estava boiando, com braços e pernas abertos brincava como criança. Havia perdido as raízes, podia voar. Sonhar. E nesses seus sonhos apenas imagens que lhe faziam suspirar. Os olhos abertos fitavam o sol e mesmo ele, agora estando todo exposto, não conseguia lhe ferir, pois ela que já havia aprendido a driblar as formigas, começava a aprender também, a desviar seu olhar para lugares que não lhe machucassem.


PS.: Obrigada pela imagem Narrador...
Texto gerado ao som do Keane - On a day like today...
Gostei disso, vou tentar colocar agora todas as músicas que ouço ao rabiscar meus esquadrinhos...

domingo, 24 de fevereiro de 2008

Bons tempos

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Eu tava sentado no meio da rua chapando com uns amigos
No violão tocava de tudo, com o céu servindo de abrigo
A certa altura chegou uma figura pedindo: toca mais uma
Ela sentou ao meu lado e disse: cara, essa é uma noite dura
Uh! Manguaça é a luz do luar
Não tem hora para acabar
Só sei que aqui tá tão bom
Sentado no chão a cantar
A vida passa tão rápido à noite, o dia chega trazendo a vontade
De que essa noite nunca mais acabe, que o relógio funcione ao contrário
Mas um já cai sobre o outro e o cansaço domina os olhares
Essa cidade acordada e a boemia voltando pros lares
Uh! Manguaça é a luz do luar
Não tem hora para acabar
Só sei que aqui tá tão bom
Sentado no chão a cantar
Bendita manguaça, sob a luz da lua
Ninguém tá sabendo a hora
E a gente sentado no meio da rua
Amigos fazendo história

(Aggeu Marques, Doca Rolim)

PS.:
Esse final de semana roubou-me alguns sorrisos...
Fez-me recordar de bons momentos...
Onde sentar ao meio fio era a rotina dos finais de tarde...

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

O anjo mais velho

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“O dia mente a cor da noite
E o diamante a cor dos olhos
Os olhos mentem dia e noite a dor da gente”

Enquanto houver você do outro lado
Aqui do outro eu consigo me orientar
A cena repete, a cena se inverte
Enchendo a minha alma d’aquilo que outrora eu
Deixei de acreditar

Tua palavra, tua história
Tua verdade fazendo escola
E tua ausência fazendo silêncio em todo lugar

Metade de mim
Agora é assim
De um lado a poesia, o verbo a saudade
Do outro a luta, a força e a coragem pra chegar no fim

E o fim é belo incerto, depende de como você vê
O novo, o credo, a fé que você deposita em você e só

Só enquanto eu respirar
Vou me lembrar de você
Só enquanto eu respirar

(Fernando Anitelli)

terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

O Contador


Sugiro que não reparem nas formas...
Tão pouco nas pernas tortas ou no braço estendido...
Tentem ver o que ainda há nas gavetas...
Se elas abertas estão...
Deve haver um motivo para isso...
Por aqui somos apenas contadores de sonhos...
E é frustrante ver a realidade consumir os dias...
A noite traz o prazer...
E todo ele vai sendo guardado em nós como se fossemos um armário...
Porém, quando não se começa a viver os sonhos...
As gavetas se enchem por demais...
E já não dá para fechá-las como antes...
Ficando sujeitas a olhos e mãos alheias...
Com os sonhos agora roubados...
No chão está entregue...
E contorcido fica a espera de algo ou alguém...
Sua cabeça que criava sonhos se abaixa...
E simplesmente, observa todas suas gavetas vazias...


PS.: Segundo desafio aceito...
Obrigada pela tela do Dalí Amiguinha**...

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

Dias assim


"A sorte vem ao seu encontro..."
Acaso ou não mas recebi essa frase hoje...
Talvez nada por aqui tenha mesmo muito sentido...
Mas definitivamente algo estranho anda rondando meus dias...
Deitar e dormir já não são duas coisas tão fáceis...
Horas a olhar para o teto...
Uma busca por detalhes perdidos por meio a tanta distraçao...
Quando se levanta e ainda tonto está...
As paredes ao redor num instante parecem se afunilar...
Dando a impressão de que está sendo engolido...
Mastigado pela ausência de uma mão a lhe segurar...
Dias assim são verdadeiras interrogações...
E uma resposta pode ser encontrada por acaso...
Então, que venha até a mim essa sorte...
Pois hoje acordei com muita preguiça para andar...

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

No silêncio


Como se fala no silêncio?
Talvez por meio de um olhar...
Mas de olhos fechados não se pode expressar a língua do coração...
E a comunicação se perde...
O vento pode até ajudar...
Afinal, dizem que ele é capaz de carregar pensamentos...
Porém nem todos são capazes de sentir o toque do vento...
Restando para esses somente as palavras...
Elas escritas mantém o silêncio...
E conseguem se conservar vivas por longos tempos...
Assim é que em dias de silêncio os olhos buscam falar...
Quando entre as velhas páginas amareladas...
Pequenas letras enchem o estômago de borboletas...


PS.:Segunda mãozinha estendida...
Obrigada Narrador...

sábado, 9 de fevereiro de 2008

Renascer


Renascer é o grande desafio...
Porque há dias em que falta coragem...
E viver o novo é arriscado por demais...
Mas o que está em risco quando já se foi ferido?
E distante estão todas as pequenas coisas...
O desejo de voar alimenta o fio da esperança...
Porém as asas caídas já não são mais símbolos de orgulho...
Renascer é uma grande incógnita...
De onde vem essa força? Como chegar a ela?
Abrir os olhos dói...
Principalmente quando não se tem o que vê...
Nas paisagens escuras que envolvem as cinzas...
Somente se faz lembrar vida o calor das últimas chamas...
Essas chamas que chamam quem ainda deseja viver...


PS.: Primeira mãozinha estendida...
Obrigada amiguinha*...

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008

Gostaria de uma mãozinha


Depois de todos esses meses deixando pedacinhos de pensamentos por aqui...
Hoje eu gostaria de ajuda...
Ando pensando sobre o que escrever...
E confesso que tenho achado tudo meio sem cor...
As imagens já não me dizem tantas coisas...
Muito menos minhas idéias têm sido compatíveis com as imagens que encontro...
Então eu queria que vocês que passam pelo recanto me dessem uma mãozinha...
Através do endereço de e-mail que tem ali no cantinho...
Vocês poderiam me enviar algumas imagens...
Quem sabe eu possa as traduzir em palavras...
Seria uma experiência interessante...
Essa partilha de impressões com desconhecidos...
Desde já agradeço a colaboração que será muito bem vinda...

Obrigada,
Até a volta... até a próxima... até um dia!!
Valeu!:)...

terça-feira, 5 de fevereiro de 2008

Samba


Ouça...
Em todos os cantos deste país...
Nos disparates desta vida...
Amar só muda de sotaque...
Não importa muito onde se está...
Mesmo um coração com poucas habilidades...
Será capaz de encontrar...
Simplesmente porque o caminho é sempre igual...
A história de um livro em branco ganha alguns rascunhos...
Porém com uma grafia a se decifrar...
Mas já que em toda casa há um bamba...
E nem todo mundo é samba...
Hoje, nesse dia de carnaval...
Com desfiles de escolas e avenidas cheias...
Vou cair na batida para me animar...
Porque essa rotina não está mole...
E por isso tento me segurar...

domingo, 3 de fevereiro de 2008

Para o Feriado de Carnaval



O LEITOR IGNORANTE — A VERDADE POR TRÁS DO MICO
Furio Lonza

O leitor ignorante lê. O leitor ignorante lê muito. Investe nisso. Tem gana de ler. É metódico, disciplinado, eclético. Com uma periodicidade quase religiosa, compra pacotes completos de livros que abrangem todas as áreas do conhecimento humano. Gasta em média de mil a dois mil reais em livros por mês. Tem crédito, tem credibilidade. É impulsivo, compulsivo, um deglutidor visceral. É reconhecido pelos vendedores das livrarias à distância. É reverenciado, paparicado, assediado, elogiado.
Ao contrário do que se pensa, o leitor ignorante não lê só best sellers descartáveis, livros de auto ajuda ou romances espíritas. Pelo contrário: ele lê de tudo: clássicos russos, ensaios de Antropologia, livros da moda, especulações científicas, biografias de filósofos, novelas policiais, contos de escritores alternativos, thrillers de suspense e novas teorias a respeito do Cosmo.
O leitor ignorante é um fenômeno relativamente recente. Surgiu há uns 10 anos. O leitor ignorante tem uma peculiaridade: só compra edições primorosas, caras e luxuosas, de capa dura, sobrecapa acetinada, miolo ilustrado com esmero e orelhas assinadas por luminares de cada gênero. Os títulos dos livros são geralmente grafados com letras em alto relevo e o lay out é de primeiro mundo.
O leitor ignorante só compra livros de peso: de 350 a 860 páginas cada. O leitor ignorante orgulha-se de ler tanto e de investir tanto na cultura. O preço dos livros que compra varia de 49,90 a 143,00 reais cada.
O leitor ignorante tem paradigmas próprios e intransferíveis. Uma das principais características do leitor ignorante é que ele lê muito, mas, por convicção, não assimila, não apreende nada, não retém as informações, passa batido pelo enredo, não agrega a história ou o perfil dos personagens ao seu dia a dia, pois tem mais coisas a fazer na puta da vida. Na melhor das hipóteses, esquece tudo que leu no dia seguinte.
O leitor ignorante lê os livros com um olho no texto e outro no número da página. O importante é a quantidade. O leitor ignorante não comenta os livros que lê em rodinhas, ele cita os títulos, acrescentando em seguida palavras ou expressões emblemáticas, tipo:
- A-do-rei.
- A-mei.
- Show de bola.
- Esse livro é dez.
As citações são profusas: em menos de 2 minutos, cerca de vinte ou trinta títulos brotam na conversa. Assim, na maior casualidade. É mais forte que ele. Quando alguém da roda ousa avançar o sinal, quebrar o protocolo e gastar mais do que 30 segundos num título, ele é logo cortado com outra citação do leitor ignorante. E assim por diante.
Para o leitor ignorante, muito dificilmente um livro fará sua cabeça ou mudará sua vida. Seu distanciamento em relação às idéias, filosofia & propostas desenvolvidas na trama é olímpico.
Outra característica do leitor ignorante é o interesse cada vez mais crescente em relação a livros que falam de (ou situam o enredo em) países que estão no noticiário dos jornais. Em geral, são regiões exóticas, famintas, paupérrimas, decadentes, com alto índice de mortalidade, seja por inanição ou guerras sazonais. A cultura desses países é um prato cheio para o leitor ignorante. Ele fica fascinado no momento. Em situações extremas, ele chega até a comentar algo a respeito com a patroa na hora do almoço. Mas são casos isolados.
Se, por um acaso, perguntamos algo a respeito do livro que tanto o fascinou dois meses depois, o leitor ignorante titubeia, diz que ouviu falar, sim, lembra alguma coisa, contaram pra ele ou leu algo nos jornais. Sim, ele lembra vagamente que fez um barulho bacana na imprensa, foi muito comentado em determinadas rodas, sabe que é um livro importante, inclusive está na lista de suas futuras aquisições. E cita mais cinco ou seis livros que estarão no próximo pacote.
Sempre atentas às flutuações e fenômenos periódicos do mercado, as editoras sabem disso. E publicam o mesmo livro, agora ilustrado ou com um apêndice novo ou com uma introdução de um figurão ou com um capítulo inédito. Que é devidamente comprado de novo pelo leitor ignorante. Que vai citá-lo na mesma rodinha com as mesmas palavras. Até que a editora publique outro título mais ou menos parecido do mesmo autor. Que vai ser novamente comprado pelo leitor ignorante. Que vai citá-lo na rodinha. E assim por diante.
Quanto mais lê, mais o leitor ignorante aprimora sua ignorância. Os volumes se avolumam, tomos & tomos são empilhados na estante meio que aleatoriamente, ficam amontoados, na oblíqua, sem método, pois o leitor ignorante gosta de passar uma idéia generalizada de desapego. O que sofistica ainda mais sua atitude idiossincrática.
O leitor ignorante é um homem moderno, ativo, atuante. Acompanha na maior desenvoltura a velocidade e a urgência dos tempos que correm. Tem profissão liberal, de preferência ligada à área de informática. Possui um cargo de diretoria com poder de mando & veto. É em sua ampla sala com design arrojado num edifício futurista que o leitor ignorante exerce seu poder de decisão, orientando seus subordinados através de planilhas & gráficos, capitaneando reuniões onde são traçadas as diretrizes da empresa. O leitor ignorante é um vencedor. Seu alto salário lhe proporciona todas as benesses de uma vida materialmente resolvida. Mora numa cobertura no Leblon. Alterna seus fins de semana entre a região dos Lagos, onde tem um sítio, e as cidades serranas, onde curte o frio com sua família numa casa pré-fabricada de madeira, fugindo das temperaturas de 39 graus à sombra da Zona Sul do Rio. É para lá que leva o laptop, a web câmara, o pen drive, os dois celulares e o pacote de livros.
Há uns 10 anos, as editoras ignorantes fizeram sua opção: depois de muitas discussões, marchas & contramarchas, teorias & hipóteses levantadas, as editoras ignorantes fizeram as contas e ficou estabelecido que seus investimentos seriam totalmente dirigidos para o leitor ignorante. Toda uma estratégia de marketing foi desenvolvida nesse sentido. Na prática, isso queria dizer mais ou menos o seguinte: é mais negócio vender um livro de 200 reais do que 10 a 20 reais cada. Em conluio aberto com as livrarias ignorantes, que também já andavam flertando com essa idéia há muito tempo, vários problemas ficaram resolvidos: o estoque, o rodízio de títulos, a exposição dos novos lançamentos, a devolução, a consignação, a divisão das livrarias ignorantes em partes nobres & estanques.
Para isso, no entanto, uma terceira e importante força foi ativada: a imprensa ignorante. Em perfeita sincronia entre as partes interessadas, começou a fazer um interessante jogo de meio de campo. Da seguinte maneira: só os livros ignorantes (grandes, luxuosos e caros) recebem atenção da imprensa ignorante, que exalta suas virtudes, importância e peso cultural, explodindo matérias enormes nas capas dos suplementos ignorantes, com o foco dirigido para o leitor ignorante, que se dirige às livrarias ignorantes que, por sua vez, expõem o livro como um objeto de desejo.
Esse novo segmento de fast food literário vingou aos poucos, solidificando-se definitivamente no seio da nossa trepidante sociedade ignorante. Para isso, contudo, outras atitudes complementares foram tomadas às pressas: as livrarias ignorantes incrementaram suas dependências com luxuosos e caros restaurantes, cafés e pontos de encontro. Nietzsche, Umberto Eco e Michel Foucault passaram a dividir irmamente o espaço com deliciosas saladinhas básicas de rúcula com damasco e nozes, carpaccio de cherne, simpáticas trouxinhas de trufas e generosos copos de prosecco ou espumante importados. Esses acepipes, com o tempo, passaram a custar mais do que a obra completa do J. D. Salinger, por exemplo. Ou de Proust. Ou a famosa tetralogia de Lawrence Durrell.
Numa outra parte nobre das livrarias ignorantes, o leitor ignorante pode também desfrutar de fetiches: calendários da Taschen a 278 reais, charutos importados de Cuba, miniaturas de motos e automóveis cujos preços módicos oscilam entre 170 e 450 reais cada. Tudo para que o leitor ignorante se sinta tão à vontade como se estivesse na própria casa.
É para esses autênticos bulevares do saber que se dirige o leitor ignorante com sua família aos sábados e/ou domingos para o festim gastro cultural de fim de semana. A mãe, toda magnânima, analisada e super-resolvida leva logo a prole para a seção infantil, que fica nos fundos da mega livraria. É lá que os pimpolhos seguem os passos do pai ignorante, escolhendo seus pacotes de livros para a construção de sua futura ignorância. Enganam-se, porém, os que acham que as crianças ignorantes só gostam de publicações de monstros, feiticeiras ou detetives mirins. Eles lêem de tudo: clássicos russos, ingleses, franceses e nórdicos reescritos por escritores brasileiros desempregados; especulações científicas recontadas de forma didática por cientistas brasileiros desempregados; histórias do folclore resumidas por antropólogos e sociólogos brasileiros desempregados. Show de bola.
Nessas brejeiras andanças dominicais, o leitor ignorante gosta de fazer uma turnê circular pelas estantes e gôndolas da mega store, apontando para alguns títulos e dizendo:
- Esse eu tenho, esse eu não tenho.
Tipo assim, como num álbum de figurinhas.
- Esse eu já li, esse eu ainda vou ler.
Uma graça.
Em vésperas de eventos natalinos ou aniversários de parentes & conhecidos, as livrarias ignorantes são o point ideal para que o leitor ignorante adquira os livros ignorantes para presentear os amigos ignorantes. Há todo um método peculiar para que ele resolva quem vai ganhar o quê. Levando em conta o tipo de personalidade, caráter & características pessoais ou psicológicas de cada um, ele, geralmente, escolhe uma coleção luxuosa, cara, com capa dura plastificada e com títulos impressos em alto relevo.
Em seguida, o leitor ignorante coloca em prática toda uma gama de análises estéticas e físicas: com as duas mãos espalmadas por baixo de um exemplar, em forma de balança, ele pesa mentalmente a importância do livro, levanta e abaixa o exemplar, de maneira pendular, como se estivesse embalando um bebê recém nascido. Não só: faz perguntas à patroa, geralmente mais descolada nesses detalhes. Tipo:
- Será que ele vai gostar dessa capa, meu amor? Não é a cara dele?
Nem sempre ela concorda. Às vezes, ela franze a testa e diz:
- Você sabe que ele não gosta de vermelho. É melhor levar esse de capa verde. É mais ele.
- Mas o de capa verde só tem 270 páginas!, retruca o maridão ignorante, também franzindo a testa. Instaura-se a cizânia. Nessas horas, o ideal para resolver o impasse é mudar de coleção, até que o perfil do aniversariante se encaixe perfeitamente nos parâmetros de peso do livro e cor da capa, uma dobradinha difícil de ser satisfeita, sem dúvida.
Esse boom não poderia mesmo passar despercebido. Estatísticas, gráficos, tabelas, planilhas e ensaios sociológicos explodiram na mídia, mostrando a nova realidade em números incontestáveis: o brasileiro está lendo mais, comprando mais livros, incrementando sua cultura e se tornando um cidadão mais informado. Nunca na História do país surgiram tantas editoras novas, tantas livrarias tipo megastore, as editoras nunca publicaram tantos títulos, tantos escritores, tantas traduções, nunca houve tantas feiras de livros, tantas bienais, tantos encontros literários, nunca tantos escritores estrangeiros de países exóticos vieram visitar o país, lançando suas obras em primeira mão, nunca houve tantos prêmios literários, verbas, bolsas, concursos e financiamentos para escritores, nunca tantos atores e atrizes de telenovelas mostraram na telinha que têm o salutar hábito da leitura, divulgando títulos fundamentais e prestando um serviço educacional moderno & de ponta, nunca se valorizou tanto a arte & a cultura como um todo.
É uma tendência natural e irreversível no mercado editorial brasileiro, uma estrada sem volta, uma verdade absoluta, um importante passo para o futuro.